terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A DUPLA PERSPECTIVA:LEITURA –ESCRITA E O SOCIOINTERACIONISMO

Abuêndia Padilha PINTO (Universidade Federal de Pernambuco)

ABSTRACT : Research on reading-writing has evolved from a product to a process approach, got an interactive view and received the influence of social interactionism. On taking this progress into account, this paper aims at helping the reading-writing teacher to be more reflective, to evaluate and rethink his approach, his beliefs and social practices.

KEYWORDS : reading, writing, social interactionism.

0. Introdução
Embora Goodman (1994) considere leitura e escrita como processos psicolingüísticos unitários, esse autor também os vê como processos flexíveis, por poderem variar de acordo com o propósito, a audiência, o conteúdo, a proficiência, a língua e a ortografia. Há, por conseguinte, diversidade na unidade leitura-escrita.
Gee (2001) amplia essa perspectiva de Goodman ao sugerir que leitura e escrita não podem se separar, por um lado, da fala, da audição e da interação e, por outro, do uso da linguagem para pensar e agir no mundo. Tendo em vista tal assertiva, é necessário iniciarmos nossa apresentação centrando-nos na linguagem como um “fenômeno heterogêneo variável, histórico e social, indeterminado sob o ponto de vista semântico e sintático e que se manifesta em situações de uso concreto como texto e discurso.” (Marcuschi, 2001:43)
Organizamos nossa apresentação a partir dos seguintes itens. Primeiro, desenvolvemos uma visão de linguagem que acentua seu uso a partir das conexões, experiências, ação e interação dos indivíduos em contextos reais. Em seguida, abordamos a evolução da leitura-escrita de uma visão no produto para uma preocupação com os modos de participação do outro na negociação do significado. Fundamentados no interacionismo social discutimos a influência desse posicionamento não só no ensino-aprendizagem de leitura-escrita como na formação do professor e na sua conseqüente atuação em sala de aula. Finalmente apresentamos alguns resultados de pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos em Compreensão e Produção (Inter)Lingüísticas (UFPE) que visam a facilitar a convivência do aluno universitário com a circulação de textos com diferentes formas, ajudando-o a realizar sua leitura em diferentes níveis e a produzir textos variados em função da situação comunicativa em que estiver inserido.

1. Perspectiva Teórica
1.1 Interação, Pensamento e Linguagem
Na abordagem tradicional, lembra Gee, a linguagem é vista como um sistema fechado, abstrato, regular e homogêneo. Qualquer enunciado é tratado como representação de alguma informação. Nessa visão tradicional, a compreensão de um enunciado consiste na capacidade de traduzí-lo para um sistema representacional equivalente ou em outra língua ou numa linguagem mental, que imite a estrutura das línguas naturais.
Hoje, no entanto, há perspectivas que relacionam a compreensão de um enunciado à experiência e à ação no mundo. A perspectiva interacionista, como lembra Marcuschi (2001:34) “preocupa-se com os processos de produção de sentido tomando-os como situados em contextos sócio-historicamente marcados por atividades de negociação ou por processos inferenciais.” Nela o significado lingüístico não reside numa representação proposicional abstrata, que se assemelha à linguagem verbal. Tal significado está ligado às experiências de uma ação situada no mundo material e social. Essas experiências estão armazenadas na mente do indivíduo em termos de imagens dinâmicas, ligadas à percepção do mundo, aos seus sentimentos, atitudes e emoções. São essas experiências que usamos para dar significado às palavras e às sentenças mediante propósitos, valores, cursos de ação e de interação que achamos mais relevantes para entender o contexto. É a partir dessa noção de linguagem como forma de ação que apresentaremos algumas considerações sobre a participação do outro na compreensão e na produção textual.
Em articulação com essa forma de concepção da linguagem, adotamos as perspectivas de Vygotsky (1978) sobre o desenvolvimento intelectual, os processos subjacentes ao desenvolvimento (mediação, internalização e controle) e o contexto de desenvolvimento
Vygotsky atribui uma enorme importância ao papel da interação social no desenvolvimento humano, uma vez que as funções psicológicas superiores emergem da vida social. Para esse autor o desenvolvimento se realiza por meio da mediação com um par mais avançado que “indica, delimita e atribui significados à realidade.” (Rego, 1997 :61). O desenvolvimento e seus processos componentes como a mediação, a internalização e o controle, constroem a subjetividade do indivíduo no contexto. Trata-se, segundo Frawley (2000), de um ambiente que não é apenas real, mas autêntico, ou seja, uma oportunidade comum para os indivíduos descontarem suas diferenças a fim de operarem como se houvesse um conhecimento partilhado.
À medida que os indivíduos interagem no seu meio social, os desenvolvimentos paralelos da fala externa e do pensamento interno convergem, propiciando o surgimento da metaconsciência (= o papel da orientação no pensamento) e o controle voluntário do pensamento e da linguagem : “o pensamento torna-se verbal e a fala racional.” (Rego, 1997:65).
Para Frawley essa metaconsciência pode estar localizada nos objetos, nos outros e no próprio indivíduo. Confrontados com um problema de difícil solução em sala de aula, por exemplo, os aprendizes apresentam reações distintas, que incluem apelos verbais diretos ao objeto, apelos ao professor ou ao par mais competente em busca de ajuda, onde o caminho do objeto até o aprendiz passa por outra pessoa e, ainda, apelo a si próprio. Desse modo, o pensamento superior que busca o controle por meio da mediação e da internalização pode ser regulado pelo objeto, pelo outro, ou, ainda, pelo próprio aprendiz.
Em função dessa interação permanente com o meio e com os que os rodeiam, os aprendizes podem desenvolver, na leitura e na escrita, processos mentais, ampliar suas perspectivas e, gradualmente, internalizar as estratégias de processamento textual. O domínio desse sistema complexo de signos promove, segundo Rego (1997:68), “modos abstratos de pensar, de se relacionar com as pessoas e com o conhecimento.”
Com o tempo, os aprendizes desenvolvem uma conscientização de como os autores se dirigem e invocam a audiência para persuadir seus leitores. À medida que se conscientizam de que estão se comunicando com leitores reais que podem avaliar seus textos, os aprendizes se tornam capazes de usar inúmeras seqüências lingüísticas para se dirigir às crenças da audiência incluindo a extensão textual, a linguagem e as estratégias de apelo para induzir os leitores às suas idéias.
O reconhecimento das intenções do autor, por sua vez, contribui para a melhoria da leitura, ajudando os aprendizes a entender porque um texto foi escrito e apoiar a conscientização crítica do posicionamento e das metas do autor. Isso faz com que seja necessário o desenvolvimento de contextos de ensino que ajudem na construção do conhecimento essencial ao crescimento dos aprendizes como leitores e como escritores.

1.2. Leitura-Escrita : algumas considerações
Todavia, embora estejamos situados na era da multimídia e frequentemos ambientes de tecnologia avançada, fundamentamo-nos na nossa habilidade de leitura e escrita para obter informações, transmití-las e expandir nosso conhecimento. Nesses processos, desempenhamos um número simultâneo de tarefas para interpretar e entender as intenções do interlocutor. Como se pode deduzir do exposto, a dicotomia leitura-escrita, enfoque central de nossa exposição é bastante óbvia. Trata-se de um relacionamento entre produção e recepção, considerados como pontos extremos de um contínuo. Mas nem sempre houve esse consenso entre as duas habilidades lingüísticas.
Na abordagem tradicional a leitura, a escrita, a audição e a fala eram consideradas como habilidades distintas, descontínuas, como se suas fronteiras pudessem ser desenvolvidas isoladamente, sem atentar para sua complexidade ou interrelação. Tal perspectiva, no entanto, fundamentada em observações superficiais de sentenças isoladas, expandiu-se para uma investigação dos processos pertinentes a cada uma dessas habilidades lingüísticas. Nos anos setenta do século XX, os programas das áreas de leitura e escrita, por exemplo, fundamentavam-se na gramática e na decodificação de palavras e sentenças. Evitavam-se os erros e esperava-se que o domínio de ambas as habilidades surgisse da prática com estruturas e da compreensão de sentenças isoladas. Marcada pela instrução direta sem uma preocupação maior com a construção conjunta de conhecimentos e habilidades, a pesquisa experimental/positivista preocupava-se com o produto, fosse ele o resultado da leitura ou a qualidade do texto escrito.
Uma mudança significativa do ensino fundamentado na língua para o estudo das técnicas e estratégias de composição textual surgiu na década seguinte. Em vez de enfocar no produto da leitura ou no resultado da escrita, a ênfase passou a ser dada nas operações mentais específicas de cada uma dessas habilidades. Por conseguinte, a pesquisa cognitivista busca identificar as operações mentais do sujeito como o planejamento, a monitoração, a inferência, a auto-avaliação, a introspecção, as etapas da leitura, da escrita e as relações entre as diversas variáveis que interferem no processo de compreensão e de produção de textos, com o intuito de promover uma maior conscientização e controle desses processos.
Uma vez que a vertente cognitivista, segundo Bronckart (1992 apud Garcez, 1998:36) não considera o status histórico da línguagem, sua natureza interacional, seu uso social e sua diversidade interna, o paradigma cognitivista cedeu lugar às reflexões sociointeracionistas. Nelas, há a preocupação com a formação da linguagem, do discurso e do conhecimento. A maneira de tratar a linguagem irá depender do tipo de interação social em que os indivíduos estão inseridos e da significação atribuída à tarefa. Tal posicionamento resultou num enfoque crescente no contexto social em que ocorre a aprendizagem e no papel da linguagem no desenvolvimento da leitura e da escrita.
Nessa nova perspectiva a leitura é vista como um evento social e cultural que envolve a língua escrita. Bloome (1993, apud Celce-Murcia e Olshtain 2001), por exemplo, propõe uma visão de leitura como um processo social com ênfase na interação autor-leitor. Nessa visão o texto se constrói com base num diálogo entre os interactantes que compartilham conhecimentos e experiência. Segundo Coracini (2001), o sentido único, literal, atrelado às palavras ou ao texto, característico da visão estruturalista, transforma-se na possibilidade de construção de sentidos, como propõe a concepção interacionista. Nesse caso, lembra Coracini (2001:142), “só é possível conceber a leitura como um processo de produção de sentidos, cujos limites são fornecidos, não pelo autor, mas unicamente pelo momento histórico e social e pelas ideologias que atravessam o discurso no qual se encontra inscrito o sujeito.”
A partir da perspectiva do interacionismo social é possível concebermos a existência de interpretações diversificadas para um mesmo texto, uma vez que a produção de sentidos é influenciada pelas crenças e experiências dos interactantes. Nesse processo de negociação em que a formação discursiva é marcada pela ideologia do momento histórico-social, os alunos trazem seus próprios significados para o ambiente de aprendizagem; os professores trazem sua compreensão da informação e dos processos de leitura-escrita e os membros da sala de aula interagem com o texto para estruturar e reestruturar significados.

1.3. O professor e sua atuação em sala de aula
Contudo, apesar dos avanços nos estudos sobre a eficácia do ensino-aprendizagem de leitura-escrita, não há, ainda, um consenso a respeito de um padrão único, capaz de desenvolver uma maior proficiência na leitura-escrita dos aprendizes e talvez nunca venha a existir. Isso porque ao longo dos anos, as pesquisas têm apresentado hipóteses, valores e métodos contrastivos que levam a resultados e a conclusões diversificadas.
Hoffman e Pearson (2000) lembram que o paradigma processo-produto para o ensino de leitura e escrita dos meados dos anos oitenta do século XX, proporcionou uma maior compreensão a respeito da complexidade do ensino. Contudo, não contribuiu para o desenvolvimento do conhecimento do professor, da natureza desse conhecimento nem dos aspectos reflexivos, adaptativos e responsivos do processo de ensino.
Os avanços fundamentais nas pesquisas sobre ensino que proporcionaram uma melhor compreensão da atuação do professor surgiram de estudos que investigaram diretamente os processos e contextos de aprendizagem. Seus resultados sugerem que a meta do ensino-aprendizagem de leitura-escrita consiste em levar o professor a compartilhar suas idéias e experiências sobre a melhor maneira de ajustar os contextos, estabelecer metas e prioridades para seu trabalho. Em suma, consoante Hoffman e Pearson, o professor deve abandonar as tradições de pesquisa do passado e se tornar um participante ativo nas mudanças de suas convicções e práticas sociais. Tais mudanças ocorreriam à medida que o professor refletisse sobre suas crenças e sua atuação, buscando a melhor maneira de aperfeiçoar a compreensão e a produção de seus alunos.
Esses novos posicionamentos, aliados à noção de envolver ativamente os aprendizes na construção do seu próprio conhecimento e de compreender e produzir textos com a ajuda de uma pessoa mais capaz, têm fundamentado as crenças epistemológicas de muitos professores. Como educadores, os professores buscam transformar seus papéis de transmissores do conhecimento para facilitadores da compreensão.
Nessa abordagem participativa, os alunos se engajam na aprendizagem ativa para invocar o pensamento reflexivo, a estruturação das idéias, a atenção para os pontos de vista e opiniões dos outros. Isso permite, ao professor, assumir o papel de facilitador , mesclando a opinião do aluno com questões e fatos essenciais fundamentados em suas experiências de vida.

1.4. A Pesquisa em Leitura e Escrita: algumas reflexões
Com o intuito de promover a internalização de operações psicológicas mais complexas nas habilidades de leitura-escrita de acordo com o paradigma sociointeracionista, o Núcleo de Estudos em Compreensão e Produção (Inter)Lingüísticas vem desenvolvendo, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisas cujas metas se destinam a: a) facilitar a convivência do aluno universitário com a diversidade de textos presentes no seu cotidiano; b) promover uma maior independência na leitura e c) possibilitar a produção de textos diversificados, conforme a situação em que o aluno estiver inserido.
A execução dessas metas torna-se possível devido à implementação de atividades fundamentadas em tarefas, nos cursos de Inglês Instrumental tanto na graduação quanto na pós-graduação. Tais atividades objetivam verificar a influência dos fatores afetivos e cognitivos na compreensão/produção textual dos grupos pesquisados, por meio de enfoques na conscientização metacognitiva, na interação em sala de aula e nos gêneros textuais.
Nossos informantes elaboram suas tarefas a partir das três fases dos mecanismos de controle propostas por Frawley (op. cit.) : o controle pelo objeto, onde a atenção é fixada num objeto (um texto, por exemplo, seguido da apreciação dos mecanismos textualizadores e dos mecanismos enunciativos) que domina a cognição naquele momento; o controle pelo outro, atividade em que os aprendizes buscam apoio num colega ou no professor para ler o texto e, em seguida, resumí-lo, fazer previsões fundamentadas no título ou nas ilustrações, praticar estratégias específicas de leitura, expressar opiniões pessoais, entre outras atividades. E o autocontrole estratégico, quando os aprendizes controlam a si próprio e aos outros, ou seja, quando passam a executar tarefas similares de modo independente. Verifica-se, nessa última fase, a transição das funções interpsicológicas para as intrapsicológicas por meio da mediação com pares mais proficientes.
Os problemas de compreensão enfrentados pelos alunos são discutidos e solucionados mediante esse trabalho em pares ou em grupos. O fato de os alunos mais proficientes quanto ao conhecimento sistêmico trabalharem com os menos proficientes revela-se positivo por duas razões. Primeiro, porque os mais proficientes são capazes de explicar o que seus pares menos capazes não conseguem apreender do input. Segundo, porque ao negociarem o significado de uma palavra ou sentença com o colega, os alunos mais capazes também se beneficiam, uma vez que estão delimitando o significado para si próprios. Assim, o que os alunos aprendem na interação com seus pares, internalizam e passam a executar independentemente.
Indagamos, então, quais as causas que concorrem para uma maior eficiência nos resultados desse ensino colaborativo? Vários fatores podem contribuir para esse clima de confiança e de otimismo dos aprendizes. O primeiro, talvez o mais importante, é o fator afetivo, representado pela atitude e motivação. Convém ressaltar que é comum solicitarmos aos informantes que citem palavras que melhor expressem seu desempenho antes e depois do curso. Suas respostas sempre focalizam dois dos aspectos essenciais à aprendizagem : atitude e motivação. No início, por exemplo, predominam palavras de significação negativa com relação à atitude como, por exemplo, ansiedade, desânimo, desespero, desordem, confusão, fraqueza, insegurança e lentidão, entre outras. O contraste com a fase final é evidenciado por meio de vocábulos como otimismo, conquista, realização, objetivo, paciência, estímulo, clareza, compreensão, satisfação, determinação, segurança e rapidez, o que demonstra uma mudança de atitude e uma motivação maior para a aprendizagem.
Um segundo fator consiste na necessidade de leitura de textos na área específica do grupo pesquisado. A percepção, por parte dos alunos, da utilidade prática do que está sendo aprendido também impulsiona a motivação. E uma vez verificada as vantagens quanto ao uso das estratégias pertinentes ao processamento da leitura e da escrita, os alunos demonstram uma atitude positiva e um maior interesse na execução das tarefas. Acrescente-se a isso que a introdução de tarefas mais complexas, interessantes e desafiadoras, ao longo do curso, também têm um efeito positivo na aprendizagem. Assim, à medida que tais tarefas oferecem oportunidades para a solução de um problema, uma apreciação crítica, uma síntese ou um resumo, os alunos esforçam-se mais e são mais estratégicos, o que contribui para a melhoria da aprendizagem.

2. Considerações Finais
Em nossas considerações finais gostaríamos de enfatizar que a vontade de abordar tarefas de maneira flexível, estratégica, de despender esforços e de persistir nas atividades propostas pelo professor, depende do modo como a leitura e a escrita são experimentadas em tais atividades e no ambiente da sala de aula. Nessa abordagem participativa e na posição de interlocutores mais capazes tanto do ponto de vista cognitivo quanto conversacional, o professor não deve tomar a iniciativa nem assumir a responsabilidade pela solução dos problemas de compreensão. Seu papel consiste em apoiar, de modo positivo e discreto, a negociação do significado pelos alunos, estruturar, verbalmente, suas contribuições e hipóteses e prevení-los quanto ao truncamento de idéias. Por conseguinte, é essencial analisar o tipo de ensino, as atividades desenvolvidas e a sociointeração em sala de aula, para que se possa obter um melhor conhecimento do que é feito nesse ambiente de ensino, ou seja, apreciar o modo como o contexto afeta a motivação e facilita a aprendizagem proporcionando, assim, uma maior independência no processamento da leitura e da escrita. .

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